Jovem, Paz, Ilusória

O mundo gira, o mundo se move e a cada ano que passa a lua está mais distante de nós. O mundo é uma bola, uma laranja descascada, o mundo é um relógio. O mundo é um cifrão e nós sabemos o que isso significa, sim? O mundo é dinheiro. Tudo é dinheiro. Não importa o quanto eles sofram, desde que eles fabriquem o meu tênis e satisfaçam minha vontade muito louca de consumir e de ser... Ser o quê? Ser legal. Ser cool. Eu tenho um novo nike, ganhei da minha tia que foi à China esses dias e comprou lá da fábrica mesmo. Ela disse que não entrou na fábrica, porque já do lado de fora da fábrica ela sentia um cheiro horrível, uma mistura de merda, urina, cola quente e sofrimento. Perguntei a ela qual era o cheiro mais forte, ela disse que era o de sofrimento. Eu aqui de longe não sinto esse cheiro, então tudo bem pra eu ficar assim. É claro que fiquei preocupado com o sofrimento deles, mas minha preocupação maior agora é esconder o baseado dos meus pais. Falando nisso, fico me perguntando às vezes de onde é que vem esse baseado, será que é da Colômbia? Da Venezuela? Não sei. O mundo é mesmo uma bola e meu teto gira junto com ele, essas cores todas também giram, esse gosto doce na boca é que causa toda essa loucura, esse movimento... Essa alucinação. Estou feliz, eu acho. Estou no teto do meu quarto e estou olhando para meu corpo deitado na minha cama. De repente eu caio em cima de mim e tomo um susto, meu coração salta fora do meu corpo e rasteja pelo lençol do meu quarto, manchando-o de sangue. O ar vai embora, as cores vão escurecendo, o mundo vai parando e eu tento alcançar meu coração, mas minhas forças também foram embora.  Então eu apenas me pouso no colchão, como pouso numa nuvem, fecho meus olhos, sinto a brisa do mundo passar sobre mim e descanso, sentindo uma paz antes nunca imaginada por mim. Eu descanso em paz.

Dez anos

Tenho me sentindo um muleque de dez anos correndo pela rua, jogando bola , ralando joelhos e rindo de tudo isso. A felicidade está se espalhando dentro do meu corpo, indo pra cada cantinho de mim e crescendo crescendo, mas crescendo tanto, que chega a sair pelos meus poros, pelos meus olhares, sorrisos e palavras. Eu apenas sinto esse momento, me divirto com ele a cada instante que passa, pois sei que uma hora vai embora. Porque nenhuma felicidade exarcebada é eterna, não é? E acho que nem é pra ser. É por isso que esses momentos únicos, que acontecem de anos em anos, são tão prazerosos, tão deliciosos de se sentir e saborear e cheirá-los e de fazê-los um tudo. Eu sou aquele muleque de dez anos brincando de esconde-esconde na rua até onze horas da noite e que se não é a mãe dar uma chinelada na bunda, não para de brincar nunca. Fica escondido, fica pego, duro ou mole, de saia ou maiô, fazendo seus golzinhos e xingando os vizinhos chatos que querem dormir. Eu sou aquele muleque magricela, pulando na chuva, correndo dos mais velhos, todo sujo de lama e asfalto.

Tenho dez anos, hoje de noite vou correr pelas ruas do mundo e apertar sua campainha, vou te gritar, te chamar pra brincar e se você for o último a chegar, será a mulher do padre.

É isso. Eu estou feliz.

Emily

Ah, o mundo! Uma imensidão de possibilidades de ser feliz, de chances de amar e ser amada. Ah! Como eu adoro o mundo! Quem me vê rodopiando embaixo da chuva nem desconfia que tempos atrás eram de lágrimas que meu rosto se molhava. Debaixo daquelas gotas que brotavam dos meus olhos, minha feição era de pura infelicidade que parecia um demônio a abraçar minha alma. Longo foi o tempo em que demorei para livrar meu ser do demônio da depressão, longas foram as noites perdidas em pranto, imenso foi o saudoso amor que senti prolongar dentro do meu coração e confusa era minha cabeça, que não sabia se dava ouvidos à razão ou ao coração. Mas o tempo passa, vai embora e junto com o tempo, a dor vai junto. Se hoje rodopio debaixo da chuva é porque me coloquei à frente de toda a cólera que sentia, fiz de mim o meu próprio escudo e parti para a vida, fui viver. Se hoje deixo a chuva cair sobre minha pele branca, é porque eu senti a benção de amigos debruçar sobre minha cabeça e sentenciar, ordenar, gritar, benzer, clamar: Vai ser feliz, minha linda! E eu fui, mas sem pressa. Fui com cautela que é pra não pisar em falso, que é pra não cair num buraco, nem perder o equilibrio. Quando dei por mim, já tinha encontrado o sorriso que há tanto não nascia no meu rosto. Fui me encontrando, sentindo meu corpo se fortalecer, minha mente se abranger e meu coração amanhecer. Ah, como foi bom sentir o bumbo do coração tocar novamente! Aquele pulsar surdo, forte, que resplandece a alma de quem ama, de quem amou e quer amar novamente. Eu me vi refeita, pronta para pular, cair, dançar e quebrar. Eu me vi mulher, madura, muleca, fortalecida e inteira. Eu me vi no espelho e pude reconhecer, pude reencontrar no fundo dos meus olhos o brilho que havia sumido e que voltava, mais forte, mais brilho do que nunca. Então coloquei meu vestido, minha sandália, meus brincos e meu colar. Coloquei minha felicidade no sorriso, meu amor nos olhos, minha paixão nos ombros, meu desejo nas mãos e minha força nas pernas e então abri a porta e vi a chuva e senti a chuva e molhei meu corpo e mostrei meu sorriso e voltei ao mundo.

Moreninha

Moreninha dos cabelos negros longos reluzentes e cheirosos,
Do olhar penetrante agudo e doloroso,
Do sorriso meigo contido e iluminado,
Do beijo quente mordido e molhado.

Moreninha do corpo pequeno bronzeado e jovem.
Do medo do amor e da vontade de se entregar.
Moreninha do vestido de flores e perfumes naturais.

Ah, Moreninha, como é difícil te encontrar!

Danço

E eu, morto como estou, ainda me pego dançando como nos meus dez anos de idade. E todo mundo olha, sorri, segura, empurra, pede mais, pede menos, grita, xinga, elogia, e todo mundo dança comigo. Eu jogo meus braços ao vento, minhas pernas confusas remexem o chão, minha cabeça perdida se encontra num baile irreal. E danço assim porque escolher não dançar já me cansou. Eu já não quero mais sentar e ouvir o que todos têm pra dizer, nem quero enxergar naqueles moços a perfeição, eu quero ficar em pé na beira do palco, levantar os braços e gritar o que tenho para dizer. Vou gritar, cantar e mandar voar entre os ares as minhas palavras de amor, meus sonhos recheados de sexo e ódio, minha vontade de morrer, meu medo de matar alguém, meu romance triste e deprimido que me fudeu durante meses, que fez do meu coração um caralho de tão doloroso, de tão remexido e partido. Vou gritar a dor que é não ter um pai e ao mesmo tempo, chorar o amor que tenho pela presença dele. Vou expulsar de mim demônios e eles vão invadir suas cabeças, suas mentes e vocês vão me ver, me olhar, me enxergar sem roupas, nu, do jeito que Deus me permitiu ser. Vou arrancar tudo o que guardo no meu estômago, no meu coração, fígado e rins. E vocês vão me ouvir, vão vomitar, e quem sabe, entender o porquê d'eu ser um homem tão pequeno e a minha dança ser tão grande.
Hoje vou contar uma breve história:

Era uma vez um garoto que se sentia só.