Oxitocina

O meu coração andava quieto demais, calmo, sereno, parado no tempo, esperando por algo que o fizesse pulsar. Foi então que num dia eu encontrei seu sorriso, suas palavras, o tilintar do seu brilho que fez meu coração voltar a pulsar, a se acelerar, a perder-se na intensidade dos bumbos que há tempos não fazia. Agora meu coração anda inquieto demais, sofrendo com os extremos que é sentir-se apaixonado, apegado à outra pessoa. Quando você chega, minha pequena, bem do seu jeito de chegar, nem manso nem direto, apenas chega sem avisar, o meu coração se sente sereno, calmo como o cair de uma folha de uma árvore, os batimentos são suaves e atentos, apenas esperando o momento de descansar ao ouvir suas palavras. Então você fala, sussurra em meus ouvidos juras e verdades que enlouquecem a minha alma, transforma o cair da folha num turbilhão de ventos sem destino, expandido dentro de mim, me tomando por inteiro. Penso que é a felicidade ao te sentir tão junta à mim. Então vem o momento em que você tem que partir, aí meu coração se perde num buraco de pezares, me sinto perdido, incompleto e desolado, mas logo lembro que outra hora você volta, então me refaço por inteiro, coloco o sorriso no rosto e fico pronto pro seu próximo chegar, sentindo a ansiedade para poder te amar e só te amar.
A claridade vinda dos dias ensolarados invadem seu corpo como um veneno, a agonia sentida vem da energia do fogo que contém em cada raio do sol. Por não aguentar tal força dentro de si, esconde-se numa caverna escura chamada mente, ali construiu um castelo escuro rodeado por pedras escuras sob o céu escuro da noite. Fechado pro brilho do que está por vir, ele vive com aquela sensação de morte, mas vive, preso aos seus ferros e algemas, sendo chicoteado por lembranças que pertencem a outras vidas que não mais lhe servem. Atordoado, com o sangue das feridas lhe correndo a pele, ele se joga no calabouço do castelo e espera sentado no chão frio e úmido os monstros que ali moram lhe devorarem por inteiro, pra não deixar nem sombra do que foi ou do que poderia ser.
Quanto à mim, eu vou continuar seguindo a estrada que me levará até o pôr-do-sol. Lá encontrarei amigos, parentes e amores passados. Vou entrar na dança da fogueira, rodar que nem um índio, abrir meus braços pro céu laranja e chorar pra Deus toda a minha alegria. Meus gritos viajarão pelo forte vento e chegará aos ouvidos do meu pai num sussuro de amor.

Não quero mais pisar em espinhos, nem topar em pedras, nada mais vai me fazer sair do meu caminho. O meu destino é feito pelos meus passos, que agora só seguirão adiante.

Bailarina

Deitado aqui na cama, te olhando com esses olhos que brilham enquanto você descansa um pouco seu corpo, eu fico imaginando se todas essas linhas tênues que formam seu corpo nu são realmente de verdade. Levo as pontas dos meus dedos até sua pele, pousando minha mão na curva da sua cintura e então deixo a minha mão viajar pelo seu corpo, deslizando minhas unhas pela sua carne e confirmando que tudo aquilo que está diante de mim é de verdade.  Você estremece um pouco, num quase despertar, mas logo volta a sonhar calmamente. Eu, meio paralisado por quase te acordar, solto um suspiro de tranquilidade e volto a admirar sua beleza, que para os meus negros olhos é tão infinita quanto às estrelas no céu. Me levanto, semi nu, e com passos suaves, onde meu pé pisa calmamente no chão gelado do quarto, eu vou andando na direção da cabeceira. Lá encontro um copo de café, já meio gelado, mas ainda assim café e eu o pego, tomo um gole enquanto ando vagamente até a janela do quarto. Ao abrir a janela, meus olhos se contraem por conta dos raios de sol que invadem meu rosto e junto com os raios vem um cheiro de maresia, algo como sal e água juntos, logo depois o som das ondas batendo nas pedras, na praia, no quintal. Quando restabeleço minha visão dou de cara com uma visão linda do mundo lá fora, uma espécie de paraíso, vazio, deserto. Então sorrio por estar nesse paraíso deserto somente com você, deitada entre aqueles lençóis perfumados pelo nosso suor.  Me viro de costas pro sol, pro mundo, pro mar e fico a te olhar dormindo, observando o movimento lento que seu busto faz enquanto você respira. Seu rosto tem um ar leve, seus lábios fechados arqueiam num sorriso discreto, suas mãos perdidas entre os lençóis, tudo parece despreocupado e penso que se eu pudesse ler mentes, diria que a sua está debruçada num lindo sonho. Tudo isso faz descer uma lágrima solitária do meu rosto, que desenha uma trilha de pequenas gotas d’água na minha bochecha e se acaba no cantinho do meu sorriso.
Sorriso parecido com o que eu abri ao te ver dançar naquele palco, sob aquelas luzes, de frente pra tantas pessoas, dentro daquela roupa tão linda e tão delicada. Os giros dos seus pés, os saltos e pousos que seu corpo faziam, o sorriso em seu rosto, o brilho em seus olhos, tudo isso me encantou num átimo de segundo. Foi naquele instante que algo aqui dentro que pulsa todos os dias decidiu - não abriu espaço para discussão - que você seria a mulher da minha vida. 

A Bailarina dançava sua dança pra sua plateia. A plateia assistia a dança da Bailarina e impassível, ansiava por um erro. Na plateia havia muitas pessoas. Dentre todas essas pessoas, só havia uma que não estava impassível com aquela dança. Era um rapaz vestido num terno casual, perdido naquelas cadeiras. E ele a olhava com os olhos fixos, saltados, cheios de lágrimas e presos aos movimentos delicados que a bailarina traçava. Boquiaberto, ele sentiu, sentiu tanto que voltou todas as noites possíveis para assisti-la.

No último gole do café e na última lágrima enxugada, lembrei da noite em que te esperei do lado de fora do teatro, esperando naquele frio ter a sorte de você olhar pra mim e sentir o mesmo que eu. Então você saiu, dentro de um casaco vermelho, pescoço enrolado num cachecol cinza, sorrindo e acenando para alguém lá dentro. Virou-se na minha direção...

A Bailarina deu de cara com o rapaz, um instante congelado na história dos dois. Foi assim, num cruzar de olhares, num mergulhar de alma e em dois sorrisos que se tornaram um só sorriso. O rapaz sorria por ela estar ali, na frente dele, e a Bailarina sorria por ele ter esperado o momento de estar na frente dela. A dança era do destino, os saltos do coração, os giros dos pensamentos e os pousos... Das mãos. A Bailarina sentiu o toque forte dos dedos dele e sentiu lá dentro do seu pulsar cadenciado de bailarina, que agora acelerava num átimo de segundo, que era ele – aquele rapaz nervoso – o homem da sua vida.

Sento calmamente na beirada da cama, ainda sorrindo, ainda lembrando, ainda sentindo e levo meus dedos ao seu rosto, coberto por alguns fios de cabelo. Retiro os fios, observo seu rosto nu, dormindo, o sorriso discreto ainda nos seus lábios. Pouso meus lábios nos seus, sinto a maciez da sua boca durante alguns segundos e penso, cá dentro da minha cabeça, que eu vou cuidar de você pra sempre, Bailarina, só pra te ver dançar a vida toda.

Asas

Numa versão natural das coisas, essa história começaria no dia em que você olhou pra ele e ele pra você, então vocês dois se apaixonaram, se amaram, fugiram para a cidade grande e conceberam em seu lar um bebê meio gordinho. Mas nada aqui será natural pra mim, nem pra você.

Numa versão mais clara das coisas, essa história começa quando num dia qualquer eu resolvo pegar o que não é meu, uma espécie de furto e por minha causa uma briga imensa é explodida dentro do nosso lar. As imagens daquele dia são claras e estridentes, como os gritos de uma senhora, de um jovem, de dois senhores e os seus gritos misturados com suas lágrimas. Tudo por minha causa. Eram cinco reais, feito de papéis que colam em outros papéis. A minha intenção realmente não foi aquela. Eu, menino pequeno que era, só queria ter a chance de ter algo em abundância, queria completar algo na minha pequena vida. Foi naquele dia que eu descobri a rachadura dentro do meu cásulo. Assustado, como sempre fui, preferi fechar olhos e ouvidos. Perdi tanta coisa...

Agora, se formos pensar de uma forma mais emaranhada do todo, toda essa história é o que nos prende no hoje, nesse hoje que somos presos, nesse hoje que nos falta espaços. Por causa dessa história, hoje não vivemos como queríamos e mesmo assim, é, mesmo assim, apesar desse problema e os que vieram junto, nós ainda achamos tempo pra sorrir e se amar... É o que nos resta.

Eu acordo todo dia torcendo para te encontrar ali perto, um sinal de vida seu, que me faça tranquilizar meu coração. A descoberta desse mal pra mim foi um tiro na alma, e se você se lembra, eu chorava feito criança, com os olhos vermelhos, denunciando o medo que se instalava no meu coração. O medo de perder você pra sempre, de não ter pra quem correr ou quem abraçar. Esse medo está dentro de mim todo dia e todo dia eu tento deixá-lo de lado, mas minha cabeça é grande, ela voa, e eu sempre me pego pensando nisso. Até quando terei você aqui perto de mim pra me proteger? É, me proteger. E olha que a frágil na história é você! Mesmo assim, me protege como ninguém é capaz.

Lembrar do teu sorriso cria dentro de mim uma vontade assim, maior do que eu, de continuar a lutar pelo que acredito. Eu vivo por você.

Anj

E sobe aos céus como um anjo negro maldito por ter dito o que não era pra ser ouvido, e então vive com um sorriso podre no rosto iluminando a alma daqueles que são escuros e negros, fétidos e mortos. Ele sobe aos céus à procura de Deus e chega lá, procurando Deus, achando ninguém, o céu vazio de Deus, cheio de nuvens brancas e trovões negros, o céu sem anjos e pássaros. Pisa no chão do céu implorando por uma energia mágica cósmica adentrar os furos dos teus pés e invadir teu organismo e fazê-lo sentir nem que fosse uma pontada assim de qualquer coisa que seja misturada com a indiferença que nutre pelos outros que não enxergam nada além do que é pra ser visto e principalmente pego. Roda os braços nos chãos dos céus tentando acertar o rosto de um santo, tocá-lo o faria sorrir como nunca sorriu antes, porque eis um milagre, um santo, mas não, nada de santos para ele, apenas a falsa impressão de que a única companhia que tem é sussurrar do vento em seus ouvidos sujos, sussurram algo mais ou menos assim pule, pule, se jogue, o céu é tão vazio quanto o seu coração, o céu é seu lar, mas tu não quer nada disso! Quer mãos e pernas e rostos e salivas e seios e genitálias tocando tua pele sedenta por humanos E ele gargalha enquanto ouve tudo aquilo chegar aos seus ouvidos, gargalha enquanto corre em direção ao precipício e num salto de braços abertos imita um anjo qualquer negro que se joga do céu e vai de cabeça em direção ao inferno, queimando suas penas ao invadi-lo e cair no colo de centenas de anjos também caídos que sentiram a falta de um Deus e fizeram o mesmo que ele, se entregaram a necessidade de ter alguém o empurrando, tocando-o e sendo-o.